domingo, 8 de novembro de 2009

Fw: DICA DE LEITURA

 
 

Texto de Marta Scherre. O preconceito lingüístico deveria ser crime. Galileu. Editora Globo. Novembro de 2009.  p.94-95.

Basta ser homem, estar em sociedade e estar rodeado de pessoas falantes que a língua – este sistema de comunicação inigualável – emerge, se instaura e toma conta de todos nós, de nossos pensamentos, de nossos desejos e de nossas ações. Falar faz parte do nosso cotidiano, de nossa vida. A troca por meio das formas lingüísticas é a nossa dádiva maior, nossa característica básica. É por meio de uma língua que o ser humano se individualiza, em um movimento contínuo de busca de identidade e de distinção. É isto, enfim, que nos torna humanos e nos diferencia de todos os outros animais.

Já está  bem evidenciado que todo e qualquer homem adquire uma língua ou variedade lingüística de forma perfeita e dela é senhor absoluto. Não existe homem sem-língua. Mesmo as pessoas com deficiências diversas adquirem um sistema lingüístico. Quem é surdo, por exemplo, adquire as línguas de sinais, que também são sistemas complexos e perfeitos.

Sendo assim, não existe razão para que tenhamos preconceito com relação a qualquer variedade lingüística diferente da nossa. Preconceito lingüístico é o julgamento depreciativo, desrespeitoso, jocoso e, consequentemente, humilhante da fala do outro ou da própria fala. A grande questão é que as variedades lingüísticas mais sujeitas a preconceito lingüístico são, normalmente, as com características associadas a grupos de menos prestígio na escala social ou a grupos da área rural ou do interior do país. Historicamente, isso ocorre pelo sentimento e pelo comportamento de superioridade dos grupos vistos como mais privilegiados, econômica e socialmente.

Então, há críticas negativas com relação, por exemplo, à falta de concordância verbal ou nominal (As coisa tá muito cara); o ao r no lugar do l (Framengo); à presença do gerúndio no lugar do infinitivo (Sra. Marta, daqui a uns três minutos eu retorno a ligação pra senhora, porque eu vô tá verificano); ao r chamado de caipira, característico da fala de amplas áreas mineiras, paulistas, goianas, matrogrossenses e paranaeneses (em franca expansão, embora sua extinção tenha sido prevista mesmo por linguistas). Depreciando-se a língua, deprecia-se o indivíduo, sua identidade, sua forma de ver o mundo.

O preconceito lingüístico – o mais sutil de todos os preconceitos humanos – atinge um dos mais nobres legados do homem, que é o domínio de uma língua. Exercer o preconceito lingüístico é retirar o direito de fala de milhares de pessoas que se exprimem em formas sem prestígio social. Não quero dizer com isto que não temos o direito de gostar mais, ou menos, do falar de uma região ou de outra, do falar de um grupo social ou de outro. O que quero mesmo dizer e enfatizar é que ninguém tem o direito de humilhar o outro pela forma de falar. Ninguém tem o direito de exercer assédio lingüístico. Ninguém tem o direito de causar constrangimento ao seu semelhante pela forma de falar.

A Constituição brasileira reza que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante''. Sendo assim, interpreto eu que qualquer pessoa que for vítima de preconceito lingüístico pode buscar a lei maior para se defender, tendo em vista que o preconceito lingüístico se configura como um tratamento desumano e degradante – uma tortura moral. Se necessário for, poderíamos até propor uma lei específica contra o preconceito lingüístico, apenas para ficar mais claro que qualquer pessoa tem direito de buscar a justiça quando for vítima de preconceito lingüístico.

Sei que muitos devem achar que isto é bobagem, que todos devem deixar de falar errado. Mas todo mundo tem direito de se expressar, sem constrangimento, na forma em que é senhor, em que ele tem fluência, em que ele é capaz de expressar seus sentimentos, de persuadir, de manifestar seus conhecimentos, enfim, de falar a sua língua ou a sua variedade de língua.